quarta-feira, maio 11, 2011

Movimentos Negros no Brasil

Logo depois da abolição, no final do século XIX, já circulavam jornais voltados para as populações negras, como o Treze de Maio, do Rio de Janeiro (1888), e O Exemplo, de Porto Alegre (1892). Em São Paulo, a chamada “imprensa negra paulista” denunciava, nos anos 1920, a discriminação racial. Dela surgiram alguns dos fundadores da Frente Negra Brasileira, em 1931, que chegou a se transformar em partido político em 1936, mas logo foi extinta, como os demais partidos, pelo Estado Novo no ano seguinte. Na década de 1940 foram fundadas várias entidades, como a União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro.
Realizou-se em São Paulo, no dia 7 julho de 1978, na área fronteiriça ao Teatro Municipal, junto ao Viaduto do Chá, uma concentração organizada pelo autodenominado “Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial”, integrado por vários grupos, cujos objetivos principais anunciados são: denunciar, permanentemente, todo tipo de racismo e organizar a comunidade negra. Embora não seja, ainda, um “movimento de massa”,  paralelamente, revela tendências ideológicas de esquerda.
 Desde o início da década de 1970, é possível registrar a formação de entidades que, como diz o relatório do SNI (Serviço Nacional de Informações), buscavam denunciar o racismo e organizar a comunidade negra. Por exemplo, o Grupo Palmares, criado em Porto Alegre em 1971; o Centro de Estudos e Arte Negra (Cecan), aberto em São Paulo em 1972; a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba), inaugurada no Rio de Janeiro em 1974, e o Bloco Afro Ilê Aiyê, fundado em Salvador também em 1974. Militantes de algumas dessas e de outras entidades articularam-se em 1978 para a realização do  ato público. Sua motivação teve origem no assassinato do jovem negro Robson Silveira da Luz, no distrito policial de Guaianazes, para onde tinha sido levado preso, acusado de roubar frutas numa feira, e na discriminação sofrida por quatro meninos negros impedidos de treinar vôlei no time infantil do Clube de Regatas Tietê.
 A manifestação contou com a presença de Abdias do Nascimento, militante de longa data, que em 1968 havia se exilado nos Estados Unidos, onde foi professor em várias universidades. O fato de ser apontado como “conhecido racista negro” pelo relatório do SNI é um dado interessante e pode ser explicado pela forte atuação do movimento negro, naquela época, no sentido da denúncia do chamado “mito da democracia racial”, isto é, da ideia de que não haveria racismo no Brasil. Como Abdias do Nascimento, de acordo com o SNI, denunciava um racismo “inexistente”, ele mesmo seria racista. Outro documento, de janeiro do mesmo ano de 1978, advertia: “Esses movimentos, caso continuem a crescer e se radicalizar, poderão vir a originar conflitos raciais”.
 A descoberta de si mesmo como negro se mesclava a uma tomada de posição política. O simples ato de comprar uma revista, por exemplo, era decisivo. Foi o que contou Carlos Alberto Medeiros, militante do movimento negro no Rio de Janeiro desde a década de 1970: 
  Havia uma revista da qual eu já tinha ouvido falar e tinha até alguma curiosidade. Mas até para comprar à revista a primeira vez eu tive que romper com alguma coisa. Porque comprar uma revista de negros tinha um significado de identificação. Até que um dia eu comprei. E era final da segunda metade de 1969, na época em que estava aquela coisa do black is beautiful, do cabelo afro. E aquilo foi quase um amor à primeira vista. Bati o olho e falei: “É isso que falta.”
 Magno Cruz, importante referência do movimento no Maranhão desde o início dos anos 1980, relata como foi atingido por essa estratégia inicial. Em 1979, ele chegou a assinar a ata de criação do Centro de Cultura Negra (CCN) local, a convite de sua fundadora, Mundinha Araújo. Mas levou certo tempo até atuar como militante:
Eu sou fundador fictício, porque não fui fundador orgânico que estava lá no início, nas primeiras reuniões. Qual era a minha resistência em me engajar no trabalho do CCN? Eu não me considerava negro. Inclusive o meu apelido na faculdade era Moreno. E eu era crente que eu era moreno. Pensava: como ia participar de uma entidade do movimento negro se eu não me considerava negro? Mas, com os seminários e com as palestras, que houve muito, eu fui mudando. A Mundinha deu o encaminhamento que eu acho que foi o melhor possível, porque foi de formação. As primeiras reuniões eram reuniões de estudo. Era uma sala, talvez um pouquinho maior do que essa aqui; quando iam mais de 30 pessoas, tinha que ficar gente do lado de fora. E era texto para a gente ler, jornal para a gente ler, para discutir, livros… Ninguém sabia nada sobre a história do negro. E aí, com esses cursos, esses seminários de que eu fui participando, eu fui percebendo que era negro.
 A repercussão nacional do ato público nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 1978, possibilitou a criação de muitas organizações em diferentes estados do país e acabou sendo responsável pela difusão da noção de “movimento negro” como designação genérica para as diversas entidades e ações a partir daquele momento.
O marco seguinte foi o ano de 1988, por duas razões: comemorava-se o centenário da Abolição, o que motivou uma série de ações de protesto que denunciavam as condições de vida dos negros no país, e elaborava-se uma nova Constituição. Duas importantes reivindicações do movimento viraram texto constitucional – a criminalização do racismo (Artigo 5) e o reconhecimento da propriedade das terras de remanescentes de quilombos (Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Os anos de 1995 e 2001 são os dois momentos seguintes. Em 1995 foi realizada em Brasília uma marcha em homenagem aos trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares. Era o primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso, que criou então um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, dando a partida nas primeiras iniciativas de ação afirmativa na administração pública federal. E 2001 foi o ano da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada na cidade de Durban, na África do Sul, que mobilizou o governo e as entidades do movimento negro em sua preparação e resultou em novos acontecimentos, como a reserva de vagas para negros em algumas universidades do país e novos compromissos assumidos pelo Estado em âmbito internacional.
A história do movimento negro no Brasil não deve ser entendida como “descolada” da história contemporânea, tanto do Brasil como do mundo. O marcos aqui registrado faz sentido para o movimento negro e também para a história nacional, pois se relacionam com conjunturas como a abertura política, o centenário da Abolição, a Constituinte e o governo Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Eles tiram sentido desses contextos e emprestam-lhes novos sentidos.
             
Verena Alberti é pesquisadora do Programa de História Oral do CPDOC da Fundação Getulio Vargas e professora de História da Escola Alemã Corcovado, no Rio de Janeiro.
Amilcar Araujo Pereira é doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) e bolsista do CNPq. Ambos são organizadores do livro Histórias do movimento negro no Brasil (Rio de Janeiro: Pallas, 2007).

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